Na
última sexta-feira, dia 11/11, uma entrevista concedida pelo Papa
Francisco causou polêmica. O mais nobre representante da Igreja
Católica afirmou que "são os comunistas os que [mais] pensam
como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade onde os pobres, os
frágeis e os excluídos sejam os que decidam. Não os demagogos, mas
o povo, os pobres, os que têm fé em Deus ou não".
Antes
que alguém pense que a frase proferida pelo Papa está fora de
contexto, ela foi uma resposta à pergunta: "você gostaria de
uma sociedade de inspiração marxista?", feita pelo jornal
italiano "La Repubblica". O Papa disse esperar, ainda, que
os movimentos populares espalhados pelo mundo entrem na política,
"mas não no político, nas lutas de poder, no egoísmo, na
demagogia, no dinheiro, mas na política criativa e de grandes
visões".
Dito
isto, convido o leitor a um exercício franco de reflexão histórica
sobre o tema.
Antes
de refletir, de fato, acerca das possíveis convergências entre
cristianismo e comunismo, gostaria de apontar a clara transformação
– se não ideológica, no mínimo conceitual – na conduta da
Igreja Católica atualmente. Reforço que foi o próprio Papa
Francisco o autor da frase acima citada. Ao compararmos tal
afirmativa com o discurso de outros Papas, a "nova" postura
fica clara. Recordo ao leitor uma declaração do então Papa João
Paulo II na ocasião da III Conferência Latino Americana dos Bispos
na cidade de Puebla, no México, em 1979. Ali, o pontífice disse que
a "visão de Jesus como o revolucionário de Nazaré não se
coaduna com a fé católica". Novamente contextualizando, essa
afirmação se deu em um momento onde a chamada "teologia da
libertação" (vertente do cristianismo que interpreta os
ensinamentos de Jesus Cristo no sentido de uma libertação de
condições sociais, políticas e econômicas injustas) vinha
ganhando força, sobretudo na América Latina. A Igreja Católica,
então, declara guerra aos teólogos da libertação, chegando a
excomungá-los.
Evidentemente,
nada é tão simples como imaginamos. Nem a compreensão dos textos
cristãos, nem a teoria marxista. Lembro-me da primeira vez que li
algo sobre comunismo, ainda muito novo. Pensei, logo nas primeiras
páginas: "os comunistas são membros da Igreja?", tamanha
a semelhança do que pregam um e outro. Em seguida, descobri que o
marxismo é materialista e, por isso, não crê em nenhuma entidade
superior. Vai além, diz que a religião "é o ópio do povo".
Lembro que fiquei ainda mais impressionado. "Eles buscam o
mesmo. Um com Deus, outro sem", pensei.
Com
Deus, o livro de Mateus nos diz, a partir do versículo 21:
"Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus
bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e
segue-me. Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se
triste, por ser dono de muitas propriedades. Então, disse Jesus a
seus discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente
entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é mais fácil
passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no
reino de Deus". Ou ainda em Lucas, capítulo 3, versículo 11:
"Quem tiver duas túnicas [entenda-se "bens materiais"],
reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo".
Sem
Deus, Karl Marx diz: "Sem sombra de dúvida, a vontade do
capitalista consiste em encher os bolsos, o mais que possa. E o que
temos a fazer não é divagar acerca da sua vontade, mas investigar o
seu poder, os limites desse poder e o caráter desses limites."
E completa: "O dinheiro é a essência alienada do trabalho e da
existência do homem; a essência domina-o e ele adora-a".
Ao
afirmar que o homem ama o dinheiro a ponto de adorá-lo, Marx se
utiliza de fontes e motivações claramente cristãs. O dinheiro, na
figura do capitalismo, seria a faceta mesma do falso deus e o
comunismo, neste sentido, é aquele que surge para emancipar as
massas da exploração que os escraviza e da adoração que os
condena. Este movimento, caso não possamos afirmar ser idêntico ao
movimento da fé cristã, tenta, no mínimo, se equiparar a ela.
Podemos arriscar que o comunismo tenha nascido, aliás, como
alternativa materialista à crença ascética.
Um
olhar histórico para a questão é bastante importante e
esclarecedora:
Após
Jesus desencarnar, os apóstolos fundaram a Igreja, que dentre outras
tarefas, se ocuparia de pregar os ensinamentos de Cristo. Essa
Igreja, situada em Jerusalém, era comunitária e todos os seguidores
abdicavam-se do direito à propriedade privada, tal como pode ser
visto no livro de Atos, capítulo 2, versículo 44 e 45: "Todos
os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas
propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida
que alguém tinha necessidade".
Tal
modelo, no entanto, não perdurou durante muito tempo, afinal, todos
os crentes tinham os seus bens em comum, mas não um modo de produção
comum (tal como prega o marxismo). Deste modo, após algum tempo, os
bens compartilhados foram totalmente consumidos e o grupo foi
obrigado a encontrar outras formas de subsistência.
Em
Atos, capítulo 4, versículo 32, 34 e 35 temos mais um exemplo: "Da
multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém
considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo,
porém, lhes era comum. [...] Pois nenhum necessitado havia entre
eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as,
traziam os valores correspondentes. E depositavam aos pés dos
apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém
tinha necessidade".
Outro
ponto bastante interessante da Igreja do primeiro século: mesmo com
uma hierarquia, todas as decisões da comunidade religiosa eram
tomadas, através de uma assembleia, de forma democrática. Foi assim
que Matias se tornou o sucessor de Judas Iscariotes.
A
Igreja do primeiro século pode ter sido, portanto, uma espécie de
"comunismo primitivo", uma vez que, apesar de serem
declaradamente contrários ao Império Romano, não tinham um projeto
concreto de transformação da sociedade na qual viviam.
Uma
rápida pesquisa nos mostra que, ainda hoje, a Igreja Católica
pratica uma espécie de comunismo cristão entre seus súditos –
através do monasticismo –, que compartilham a propriedade comum
entre os seus membros.
As
convergências, assim, são palpáveis. O comunismo, tal como o
cristianismo, prega a plena igualdade entre todos os membros do
grupo. O primeiro, via revolução. O segundo, via conversão. Em
Gálatas, capítulo 3, versículo 28, temos a seguinte passagem:
"Destarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo
Jesus".
Durante
a pesquisa que realizei para lhes escrever este texto, algo me
pareceu bastante claro: a oposição de Marx não é com a religião
em si, com o seu caráter ritualístico, mas com a capacidade que a
religião tem, quando institucionalizada, de influenciar
politicamente as relações de Estado. Este aspecto me parece
inquestionável, uma vez que, ainda hoje, vemos os "representantes
de Deus" exigindo votos dos fiéis para que possam fazer
carreira política. Reside exatamente aí, me parece, o "ópio
do povo" de que fala Marx.
Frei
Betto, um dos responsáveis pela disseminação da teologia da
libertação no Brasil, escreve: "a história do Cristianismo
primitivo tem notáveis pontos de semelhanças com o movimento
moderno da classe operária. Como este, o Cristianismo foi em suas
origens um movimento de homens oprimidos: no princípio apareceu como
religião dos escravos e dos libertos, dos pobres despojados de todos
os seus direitos, dos povos subjugados ou dispersados por Roma. Tanto
o Cristianismo como o Socialismo dos operários pregam a eminente
salvação da escravidão e da miséria; o Cristianismo coloca a
salvação numa vida futura, posterior a morte, no céu. O Socialismo
coloca-a neste mundo, numa transformação da sociedade. Ambos são
perseguidos e acossados, seus adeptos são desprezados e convertidos
em objetos de leis exclusivas, os primeiros como inimigos da raça
humana, os últimos como inimigos do Estado, inimigos da religião,
da família, da ordem social".
Vejam,
não pretendo convencê-los de que o comunismo tenha nascido do
cristianismo e que Jesus Cristo tenha sido o primeiro dos comunistas.
Também não faço aqui uma apologia ao comunismo. E não o faço
pois creio que ele ainda esteja muito além da capacidade humana. Tal
como somos hoje, com nossa natureza egoísta, corrupta e
individualista, o comunismo, a meu ver, não passa de uma longínqua
utopia. A experiência histórica, aliás, me ajuda a sustentar essa
ideia. Verdadeiras tragédias foram realizadas em nome do comunismo.
Dito isso, posso afirmar a vocês: o comunismo jamais foi aplicado
corretamente no mundo. As experiências históricas jamais levaram a
cabo o que lemos nos livros.
Como
disse a pouco, tudo é muitíssimo mais complexo do que podemos
imaginar e, por isso, minha intenção, antes de tudo, foi a de
demonstrar que a experiência comunista, longe de ser autoritária –
tal como a experiência histórica nos mostra – pode estar muito
mais próxima dos nossos ideais de liberdade do que possamos imaginar
e a Igreja Católica, representada pela figura do Papa Francisco,
parece, finalmente, ter percebido.
Fonte: Brasil 247 - 17 nov 2016 - Ramon Brandão (Cientista Social pela Unifesp).
Fonte: Brasil 247 - 17 nov 2016 - Ramon Brandão (Cientista Social pela Unifesp).